Esta edição do tradicional “conto de
bambas” do Padedê do Samba foi pra lá de especial! Numa tarde de sábado, dia
primeiro do mês de dezembro do ano de dois mil e dezoito, a Diretora Iara
Deodoro do Projeto Sócio Cultural nos recebeu em seu espaço conhecido por
Afrosul Odomodê, que fica na Avenida Ipiranga, 3850, Bairro Praia de Belas,
cidade de Porto alegre.
A professora Iara iniciou a sua fala, dando as boas vindas e
apresentando o equipado espaço cultural, dispondo do lugar e esclarecendo que
ali é uma casa que foi construída e pensada para agregar a nossa cultura negra,
as manifestações culturais de características afro-brasileiras de forma mais
acolhedora, com liberdades de expressão e manifestação.
Ela nos esclarece que foram muitas
histórias, até chegar no carnaval, foram 44 anos dedicados a dança. Conta-nos
que a dança sempre circulou a sua vida e que ela sempre foi a sua paixão. A dvinda
de uma família de poucas possibilidades, se tornou órfã de pai com quatro anos,
e sua mãe lutou muito para criar as três filhas... “eu era a caçula, a paparicada, a que recebeu as melhores
possibilidades, minha mãe conseguiu uma bolsa de estudos no colégio Santa Inês.
Lá existia uma escola de danças no contra-turno, o que me interessei e
ingressei...”
Iara nos conta que ela ficou
fascinada com o grupo, pois eram encenadas danças folclóricas do mundo todo,
mas que, logo a sua inquietude e espírito crítico a fizeram perceber que as
danças africanas não estavam ali representadas, e, intrigada com esta lacuna, mesmo
estando no mundo fascinante da dança, não se sentia ali representada... Foi
então que mais tarde conheceu um colega negro de um outro grupo de danças que
existia na escola Anchieta, porém este
colega fazia parte da banda da referida escola, e, ambos confabulando, concordaram
com a invisibilidade e falta de valorização da cultura Afro.
“quando
a gente se encontrava, falávamos muito sobre isso... e no mesmo ano de 1974, ele
fundou a Banda Afro Sul, e foram competir num festival estudantil no colégio do
Rosário... lançaram-se num desafio, e, mesmo sabendo que não tinham condições
de ganhar, visto que a letra da música era muito audaciosa para a época, muito
questionadora... mesmo assim intentaram... e pediram pra gente fazer a
coreografia, formando também o Grupo de Danças Afro Sul... e de lá pra cá, não
paramos mais, este ano de 2018 completando 44 anos...
Aprendi muitas coisas ao longo destes
anos, pesquisei bastante, tudo começou com a minha professora de danças, que
mesmo não tendo muita experiência ou conhecimentos da dança Afro, me deu muitos
conselhos, e uma lição grandiosa, a qual eu levo para toda a vida, ensinamentos
sobre como “escrever coreografia”, e também de como construir uma coreografia
com o que você viu, ouviu, enfim isso me ajudou muito... transformar em
movimentos as informações recolhidas...eu lia, e imaginava o que poderia ser
feito...
Existem episódios cômicos e engraçados de onde eu ‘tirava os passos’, por
exemplo, assistia aos filmes do Tarzan, e nestes filmes sempre aparecia uma
tribo africana, e sempre tinha dança, eu observava os movimentos, e tinha a
sorte que os filmes repetiam bastante, mesmo sabendo depois que não era na
África, mas em Hollywood, mas que era uma pesquisa... observava aqueles
movimentos e adaptava e criava outros, tanto é que hoje e m dia, a minha dança
afro se tornou uma dança característica do sul do país... porque se olhares a
dança na Bahia, no Rio de Janeiro, São Paulo e comparar com a nossa, haverá
peculiaridades, ‘são os sotaques da dança’...
Ela nos esclarece ainda, que sempre
se dedicou a dança afro, e foi assim por muito tempo. Nos anos 1980, os seus
amigos e parentes próximos resolvem reativar a Escola de Samba Garotos da
Orgia, que foi a escola que deu origem ao Acadêmicos da Orgia. Foi um tempo de
muitas transformações, ela nos comenta que foi desafiador, pois se tornou um
clã somente de homens, com o desafio de “por a escola na rua”. Ela lembra aos
risos de que se preocupavam só com a bateria, que pouca importância davam para
os outros setores e departamentos da escola. Foi quando Iara se dispôs ser a
porta bandeira, e que foi impedida por puro preconceito com a sua estatura,
onde alguém diz: “você não pode ser a
porta bandeira, porque você é muito baixinha”.
Quando se fala em Iara Deodoro também estamos falando em espiritualidade,
em maternidade, em fraternidade... em Carnaval! Iara desenvolveu todas as
funções em uma escola de samba: pesquisadora de tema enredo, coreógrafa de alas
e comissão de frente, porta bandeira, tesoureira, presidente, costureira,
aderecista, figurinista... Formou grandes destaques e com eles presenteou o
carnaval. Referência na dança afro no RS, é a grande matriarca do Grupo Afro
Sul, que hoje já está na sua quarta geração ao longo de seus 44 anos de
existência. "O perfume dela vai onde seus pés ainda não chegaram..."
(Edjana Deodoro, filha de Iara Deodoro). Depoimento de Gugu Lacerda via rede
social.
Depois da desfeita de seu sonho de
portar a bandeira do Garotos da Orgia, ela nos conta que se envolveu e ajudou
em todos os departamentos da escola, foram aos poucos organizando as
atividades, e elencando o que cada setor precisava, dispondo de muitos
elementos do Grupo Afro Sul, como comissão de frente, os passistas. Os ensaios
começaram e o tempo foi passando e não se resolvia a questão do casal de mestre
sala e porta bandeira. Foi então que os dirigentes da escola a procuraram e
pediram para que ela fosse a porta bandeira, e ela aceitou. Iara nos conta que
começou a dançar e ensaiar com um menino de doze anos, no segundo ano ela
dançou com o mestre sala Deja (já falecido), mais tarde ela nos conta que:
“...foi quando encontrei meu grande e verdadeiro parceiro de dança com a
bandeira, que era o mestre sala Osmar, que era bailarino, era do grupo,
trabalhava direto com dança, e foi um período maravilhoso, porque nós
inventávamos coisas novas, passos, coreografias... nos entendíamos no olhar,
não precisávamos combinar nada... ele era uma pessoa maravilhosa por dentro e
por fora... a gente tinha a consciência de que a dança daquela época era mais
solta, diferente da rigidez e do protocolo a seguir que existe hoje, a gente
tinha a liberdade de executar passos e coreografias, claro, sempre respeitando
o pavilhão, mas era um tempo mais livre, havia mais liberdade na dança,
podia-se explorar melhor a dança... era muito mais fácil de lidar com a
situação...
Depois dos trabalhos realizados na
Escola Garotos da Orgia, estava criada também a Ala Afrosul que desfilou em
muitas escolas de samba. Teve ano que a ala desfilou em 18 escolas no mesmo
carnaval. Espetáculos, apresentações das mais diversas o grupo Afrosul se
insere, uma vez que é um dos únicos, legítimo representante e dedicado
exclusivamente para as danças afro-brasileiras. Iara nos conta que foram anos
de puro divertimento, onde faziam as fantasias, adereços, vez em quando
conseguiam o tecido para a confecção da ala.
[...] “Hoje apresentei meu TCC I
intitulado IARA DEODORO: A CRIAÇÃO DE UMA METODOLOGIA EM DANÇA COMO RESISTÊNCIA
DE UMA CORPORALIDADE NEGRA NO RIO GRANDE DO SUL, onde eu trago esse processo de
investigação e análise sobre como a mestra Iara desenvolve e sistematiza esse
conhecimento em dança afro. [...] trazer a trajetória da Iara é reafirmar mais
uma vez a potência das mulheres pretas do meu povo, é trazer a história de uma
comunidade que resiste para manter a cultura do povo preto viva nesse
território. Gratidão Iara por me permitir contar um pouco dessa tua caminhada
Iara Deodoro”[...] Natália Dornelles em sua rede social
A professora Iara nos conta que foi
realizado recentemente pelo Afrosul o Espetáculo “Reminiscências”, para lembrar,
resgatar e comemorar estes espetáculos e para homenagear a todos estes desfiles
realizados pelo grupo, numa forma de manter viva a memória, pois ela nos
salienta da importância de registrar os momentos, as festividades, os
acontecimentos, precisamos valorizar a nossa história.
As pessoas não dão importância para o que realmente é o carnaval. As
pessoas não se dão conta disso... se a gente avaliar e pensar nos temas e enredos
que as escolas desenvolvem, são aulas lúdicas, uma aula de história, uma aula
cultural... precisamos prestar atenção nestes aspectos, nosso carnaval gaúcho
não fica aquém de outros carnavais do Brasil... precisamos prestar atenção
nisso... os ensinamentos contidos ali são de muita importância... por exemplo, as
aulas do Padedê, que faz um trabalho de responsabilidade, uma vez que forma
profissionais do carnaval, formando pessoas, formando artistas, formando
pessoas críticas... o dançar, ao meu ver, é algo natural, se procura o curso
porque se gosta, porém, penso que se deve aprender outras coisas além de
dançar, pensar e olhar o carnaval como um veículo cultural... precisamos pensar
nisso... o que faz uma comissão de frente? ...o que faz um passista? ...o que
faz uma porta estandarte? ... o que faz uma porta bandeira? ...e um mestre
sala? A dança!
Iara nos deu dicas preciosas para os
que dançam. Os bailarinos e dançarinos, devem procurar se aprimorar, fazer outras
modalidades da dança, outros ritmos. Ela nos diz que há elementos de outras
culturas que podem ser inseridos nas danças do carnaval, como a dança afro,
indígena, cigana podem ser agregadas às coreografias. Ela nos diz também que se
preocupa com esta “padronização da dança” inquirida pelo carnaval da
atualidade, onde, sabiamente nos dá sua opinião do que vê atualmente:
São coisas que percebo... a grande maioria das pessoas está cumprindo o
que pede o quesito, exatamente o que está escrito, o que é pedido, não se
preocupam com a finalização, com a limpeza do movimento... você não vê mais a
dança que emociona, tu verifica que todos e todas giram para um lado, giram
para o outro e cumprimentam os jurados e deu... parecem todas as mesmas, a dança
não existe, o que existe ali é só o movimento... penso e me atrevo a dizer, que
a dança seja fundamental para caracterizar e diferenciar um do outro, para não
ser uma mesmice, senão vai perder a essência... porque se não vai ser julgado e
apreciado apenas a diferença das vestimentas e da fantasia... é preocupante
esta ‘padronização’ dos movimentos, a dança precisa estar presente...
As dicas seguem durante sua experiente
fala, desvelando segredos dos movimentos, da importância do figurino para
executar a dança, uma vez que se ensaia o ano todo com roupas levez e no dia do
desfile as fantasias são volumosas e pesadas. Pensar a estrutura da fantasia. A
técnica deve acompanhar a dança e a disposição cênica deve ser pensada. O
dançarino deve ter pensamento crítico para a melhoria da dança, ouvir os mais
velhos e outros profissionais para alcançar um patamar de profissional da dança
do carnaval, ter em mente que deve melhorar sempre, pois todos precisam ter
este sentimento, de melhorar, aprimorar, mesmo o nosso carnaval estando em
crise.
Quem dança no carnaval atualmente tem que gostar muito! Uma coisa é
certa, não pode desanimar, se tu gosta mesmo disso, é esta cultura que quer se dedicar...
Acredito que o mais importante disso tudo, é ter a consciência de que é isso
realmente o que se quer... é uma missão, uma ousada missão de levar adiante
esta arte... acho importante as trocas culturais, de uma integração com outros
grupos, desenvolver outras técnicas de aulas, a própria escola Padedê pode proporcionar
isso, apresentações temáticas, participar de festividades... vejo também que o
nosso carnaval está encolhendo e formando mais profissionais que o carnaval
comporta... A dança é uma terapia, ela mexe com seu estado físico, emocional...
para nós negros é a nossa história, a dança é de suma importância, a comunicação,
a religião e todas as cerimônias são regidas pela dança... é da raiz, é uma
herança sagrada que herdamos... por isso acho de suma importância manter e
reviver estas manifestações... precisamos resistir, reagir, não desistir, não deixar
a nossa essência morrer...
Ela finalizou dizendo que o artista
do carnaval tem que aprender e saber que as dificuldades são imensas no atual
contexto e que devem, os bailarinos, dançarinos, coreógrafos e todos os demais
profissionais do carnaval buscar resgatar o respeito e a credibilidade do nosso
carnaval, que está desacreditado atualmente, mas que possui muitas riquezas humanas.
“as pessoas estão sem a responsabilidade
que assumem”... Iara acredita que devam ser pensados os acordos, contratos
e, principalmente a palavra empenhada, os artistas devem ter reconhecimento, mas
também cumprir com suas atividades da melhor forma. Enfim, foi uma tarde muito
proveitosa! Os alunos puderam ter uma conversa franca e direta com esta professora,
bailarina, coreógrafa, porta bandeira, dirigente e baluarte do nosso carnaval
com uma intimidade jamais vista!
Pedir pra eu falar da Tinha (Como
chamamos ela) é a mesma coisa que falar de uma segunda mãe. Além de ela ser
responsável pela minha formação em dança ela também cuida de mim e me aconselha
na vida pessoal e profissional! Ela sempre acreditou na minha capacidade e na
capacidade dos demais bailarinos. Ela é uma pessoa atenciosa, detalhista,
exigente, mas com um coração enorme, um conhecimento da nossa cultura afro
gaúcha e da nossa religião fora do normal. Tá sempre disposta a ajudar qualquer
pessoa que lhe procura seja para pedir conselhos ou apenas um abraço! Sou grata
a Tinha por tudo que ela faz e fez por mim! Amo fazer parte da família Afro
Sul! Gisele Mendonça via rede social.
Em nome da Escola de Mestre Sala, Porta
Bandeira e Porta Estandarte Padedê do Samba, queremos te agradecer Iara Deodoro!
Pelas lições, pelos ensinamentos, pelas experiências reveladas e por nos proporcionar
suas vivências que servirão para o nosso crescimento artístico, profissional e
pessoal. Ficamos honrados com esta aula-palestra. Muito Obrigado!!!
NOTA: importante registrar que neste Espaço do
Afrosul/Odomodê foi abrigo para a fundação da UDESCA – União dos Destaques do
Carnaval, logo, foi o embrião para o surgimento do Padedê do Samba... este
assunto será pauta para outro texto. Até lá!
Ramão Carvalho.
Para saber
mais...
NETO, Manoel Gildo Alves; SILVA, Suzane
Weber da. Enfatizando o gesto numa pesquisa sobre a
memória da dança Afro-Gaúcha. V Congresso Nacional de Pesquisadores em Dança. Manaus:
ANDA, 2018. p. 466-481. Disponível em http://www.portalanda.org.br/anaisarquivos/5-2018-4.pdf
MARTINS,
Camila Cardoso Coronel. Memória e negritude: o grupo AFRO-SUL/ODOMODE como
referência da cultura imaterial de Porto Alegre, RS. 2016. https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/157380
SILVA, Natalia Souza da.
Bloco Afro Odomode no Vinte de Novembro: celebração e resistência negra nas
ruas de Porto Alegre, RS. 2017. https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/177713