sábado, 8 de dezembro de 2018

O conto de Bambas da bailarina negra...




Esta edição do tradicional “conto de bambas” do Padedê do Samba foi pra lá de especial! Numa tarde de sábado, dia primeiro do mês de dezembro do ano de dois mil e dezoito, a Diretora Iara Deodoro do Projeto Sócio Cultural nos recebeu em seu espaço conhecido por Afrosul Odomodê, que fica na Avenida Ipiranga, 3850, Bairro Praia de Belas, cidade de Porto alegre.
A professora Iara iniciou a sua fala, dando as boas vindas e apresentando o equipado espaço cultural, dispondo do lugar e esclarecendo que ali é uma casa que foi construída e pensada para agregar a nossa cultura negra, as manifestações culturais de características afro-brasileiras de forma mais acolhedora, com liberdades de expressão e manifestação.

Ela nos esclarece que foram muitas histórias, até chegar no carnaval, foram 44 anos dedicados a dança. Conta-nos que a dança sempre circulou a sua vida e que ela sempre foi a sua paixão. A dvinda de uma família de poucas possibilidades, se tornou órfã de pai com quatro anos, e sua mãe lutou muito para criar as três filhas... “eu era a caçula, a paparicada, a que recebeu as melhores possibilidades, minha mãe conseguiu uma bolsa de estudos no colégio Santa Inês. Lá existia uma escola de danças no contra-turno, o que me interessei e ingressei...”

Iara nos conta que ela ficou fascinada com o grupo, pois eram encenadas danças folclóricas do mundo todo, mas que, logo a sua inquietude e espírito crítico a fizeram perceber que as danças africanas não estavam ali representadas, e, intrigada com esta lacuna, mesmo estando no mundo fascinante da dança, não se sentia ali representada... Foi então que mais tarde conheceu um colega negro de um outro grupo de danças que existia  na escola Anchieta, porém este colega fazia parte da banda da referida escola, e, ambos confabulando, concordaram com a invisibilidade e falta de valorização da cultura Afro.

quando a gente se encontrava, falávamos muito sobre isso... e no mesmo ano de 1974, ele fundou a Banda Afro Sul, e foram competir num festival estudantil no colégio do Rosário... lançaram-se num desafio, e, mesmo sabendo que não tinham condições de ganhar, visto que a letra da música era muito audaciosa para a época, muito questionadora... mesmo assim intentaram... e pediram pra gente fazer a coreografia, formando também o Grupo de Danças Afro Sul... e de lá pra cá, não paramos mais, este ano de 2018 completando 44 anos...
Aprendi muitas coisas ao longo destes anos, pesquisei bastante, tudo começou com a minha professora de danças, que mesmo não tendo muita experiência ou conhecimentos da dança Afro, me deu muitos conselhos, e uma lição grandiosa, a qual eu levo para toda a vida, ensinamentos sobre como “escrever coreografia”, e também de como construir uma coreografia com o que você viu, ouviu, enfim isso me ajudou muito... transformar em movimentos as informações recolhidas...eu lia, e imaginava o que poderia ser feito...

Existem episódios cômicos e engraçados de onde eu ‘tirava os passos’, por exemplo, assistia aos filmes do Tarzan, e nestes filmes sempre aparecia uma tribo africana, e sempre tinha dança, eu observava os movimentos, e tinha a sorte que os filmes repetiam bastante, mesmo sabendo depois que não era na África, mas em Hollywood, mas que era uma pesquisa... observava aqueles movimentos e adaptava e criava outros, tanto é que hoje e m dia, a minha dança afro se tornou uma dança característica do sul do país... porque se olhares a dança na Bahia, no Rio de Janeiro, São Paulo e comparar com a nossa, haverá peculiaridades, ‘são os sotaques da dança’...

Ela nos esclarece ainda, que sempre se dedicou a dança afro, e foi assim por muito tempo. Nos anos 1980, os seus amigos e parentes próximos resolvem reativar a Escola de Samba Garotos da Orgia, que foi a escola que deu origem ao Acadêmicos da Orgia. Foi um tempo de muitas transformações, ela nos comenta que foi desafiador, pois se tornou um clã somente de homens, com o desafio de “por a escola na rua”. Ela lembra aos risos de que se preocupavam só com a bateria, que pouca importância davam para os outros setores e departamentos da escola. Foi quando Iara se dispôs ser a porta bandeira, e que foi impedida por puro preconceito com a sua estatura, onde alguém diz: “você não pode ser a porta bandeira, porque você é muito baixinha”.

Quando se fala em Iara Deodoro também estamos falando em espiritualidade, em maternidade, em fraternidade... em Carnaval! Iara desenvolveu todas as funções em uma escola de samba: pesquisadora de tema enredo, coreógrafa de alas e comissão de frente, porta bandeira, tesoureira, presidente, costureira, aderecista, figurinista... Formou grandes destaques e com eles presenteou o carnaval. Referência na dança afro no RS, é a grande matriarca do Grupo Afro Sul, que hoje já está na sua quarta geração ao longo de seus 44 anos de existência. "O perfume dela vai onde seus pés ainda não chegaram..." (Edjana Deodoro,  filha de Iara Deodoro). Depoimento de Gugu Lacerda via rede social.

Depois da desfeita de seu sonho de portar a bandeira do Garotos da Orgia, ela nos conta que se envolveu e ajudou em todos os departamentos da escola, foram aos poucos organizando as atividades, e elencando o que cada setor precisava, dispondo de muitos elementos do Grupo Afro Sul, como comissão de frente, os passistas. Os ensaios começaram e o tempo foi passando e não se resolvia a questão do casal de mestre sala e porta bandeira. Foi então que os dirigentes da escola a procuraram e pediram para que ela fosse a porta bandeira, e ela aceitou. Iara nos conta que começou a dançar e ensaiar com um menino de doze anos, no segundo ano ela dançou com o mestre sala Deja (já falecido), mais tarde ela nos conta que:

“...foi quando encontrei meu grande e verdadeiro parceiro de dança com a bandeira, que era o mestre sala Osmar, que era bailarino, era do grupo, trabalhava direto com dança, e foi um período maravilhoso, porque nós inventávamos coisas novas, passos, coreografias... nos entendíamos no olhar, não precisávamos combinar nada... ele era uma pessoa maravilhosa por dentro e por fora... a gente tinha a consciência de que a dança daquela época era mais solta, diferente da rigidez e do protocolo a seguir que existe hoje, a gente tinha a liberdade de executar passos e coreografias, claro, sempre respeitando o pavilhão, mas era um tempo mais livre, havia mais liberdade na dança, podia-se explorar melhor a dança... era muito mais fácil de lidar com a situação...

Depois dos trabalhos realizados na Escola Garotos da Orgia, estava criada também a Ala Afrosul que desfilou em muitas escolas de samba. Teve ano que a ala desfilou em 18 escolas no mesmo carnaval. Espetáculos, apresentações das mais diversas o grupo Afrosul se insere, uma vez que é um dos únicos, legítimo representante e dedicado exclusivamente para as danças afro-brasileiras. Iara nos conta que foram anos de puro divertimento, onde faziam as fantasias, adereços, vez em quando conseguiam o tecido para a confecção da ala.

[...] “Hoje apresentei meu TCC I intitulado IARA DEODORO: A CRIAÇÃO DE UMA METODOLOGIA EM DANÇA COMO RESISTÊNCIA DE UMA CORPORALIDADE NEGRA NO RIO GRANDE DO SUL, onde eu trago esse processo de investigação e análise sobre como a mestra Iara desenvolve e sistematiza esse conhecimento em dança afro. [...] trazer a trajetória da Iara é reafirmar mais uma vez a potência das mulheres pretas do meu povo, é trazer a história de uma comunidade que resiste para manter a cultura do povo preto viva nesse território. Gratidão Iara por me permitir contar um pouco dessa tua caminhada Iara Deodoro”[...] Natália Dornelles em sua rede social

A professora Iara nos conta que foi realizado recentemente pelo Afrosul o Espetáculo “Reminiscências”, para lembrar, resgatar e comemorar estes espetáculos e para homenagear a todos estes desfiles realizados pelo grupo, numa forma de manter viva a memória, pois ela nos salienta da importância de registrar os momentos, as festividades, os acontecimentos, precisamos valorizar a nossa história.

As pessoas não dão importância para o que realmente é o carnaval. As pessoas não se dão conta disso... se a gente avaliar e pensar nos temas e enredos que as escolas desenvolvem, são aulas lúdicas, uma aula de história, uma aula cultural... precisamos prestar atenção nestes aspectos, nosso carnaval gaúcho não fica aquém de outros carnavais do Brasil... precisamos prestar atenção nisso... os ensinamentos contidos ali são de muita importância... por exemplo, as aulas do Padedê, que faz um trabalho de responsabilidade, uma vez que forma profissionais do carnaval, formando pessoas, formando artistas, formando pessoas críticas... o dançar, ao meu ver, é algo natural, se procura o curso porque se gosta, porém, penso que se deve aprender outras coisas além de dançar, pensar e olhar o carnaval como um veículo cultural... precisamos pensar nisso... o que faz uma comissão de frente? ...o que faz um passista? ...o que faz uma porta estandarte? ... o que faz uma porta bandeira? ...e um mestre sala? A dança!

Iara nos deu dicas preciosas para os que dançam. Os bailarinos e dançarinos, devem procurar se aprimorar, fazer outras modalidades da dança, outros ritmos. Ela nos diz que há elementos de outras culturas que podem ser inseridos nas danças do carnaval, como a dança afro, indígena, cigana podem ser agregadas às coreografias. Ela nos diz também que se preocupa com esta “padronização da dança” inquirida pelo carnaval da atualidade, onde, sabiamente nos dá sua opinião do que vê atualmente:

São coisas que percebo... a grande maioria das pessoas está cumprindo o que pede o quesito, exatamente o que está escrito, o que é pedido, não se preocupam com a finalização, com a limpeza do movimento... você não vê mais a dança que emociona, tu verifica que todos e todas giram para um lado, giram para o outro e cumprimentam os jurados e deu... parecem todas as mesmas, a dança não existe, o que existe ali é só o movimento... penso e me atrevo a dizer, que a dança seja fundamental para caracterizar e diferenciar um do outro, para não ser uma mesmice, senão vai perder a essência... porque se não vai ser julgado e apreciado apenas a diferença das vestimentas e da fantasia... é preocupante esta ‘padronização’ dos movimentos, a dança precisa estar presente...

As dicas seguem durante sua experiente fala, desvelando segredos dos movimentos, da importância do figurino para executar a dança, uma vez que se ensaia o ano todo com roupas levez e no dia do desfile as fantasias são volumosas e pesadas. Pensar a estrutura da fantasia. A técnica deve acompanhar a dança e a disposição cênica deve ser pensada. O dançarino deve ter pensamento crítico para a melhoria da dança, ouvir os mais velhos e outros profissionais para alcançar um patamar de profissional da dança do carnaval, ter em mente que deve melhorar sempre, pois todos precisam ter este sentimento, de melhorar, aprimorar, mesmo o nosso carnaval estando em crise.

Quem dança no carnaval atualmente tem que gostar muito! Uma coisa é certa, não pode desanimar, se tu gosta mesmo disso, é esta cultura que quer se dedicar... Acredito que o mais importante disso tudo, é ter a consciência de que é isso realmente o que se quer... é uma missão, uma ousada missão de levar adiante esta arte... acho importante as trocas culturais, de uma integração com outros grupos, desenvolver outras técnicas de aulas, a própria escola Padedê pode proporcionar isso, apresentações temáticas, participar de festividades... vejo também que o nosso carnaval está encolhendo e formando mais profissionais que o carnaval comporta... A dança é uma terapia, ela mexe com seu estado físico, emocional... para nós negros é a nossa história, a dança é de suma importância, a comunicação, a religião e todas as cerimônias são regidas pela dança... é da raiz, é uma herança sagrada que herdamos... por isso acho de suma importância manter e reviver estas manifestações... precisamos resistir, reagir, não desistir, não deixar a nossa essência morrer...

Ela finalizou dizendo que o artista do carnaval tem que aprender e saber que as dificuldades são imensas no atual contexto e que devem, os bailarinos, dançarinos, coreógrafos e todos os demais profissionais do carnaval buscar resgatar o respeito e a credibilidade do nosso carnaval, que está desacreditado atualmente, mas que possui muitas riquezas humanas. “as pessoas estão sem a responsabilidade que assumem”... Iara acredita que devam ser pensados os acordos, contratos e, principalmente a palavra empenhada, os artistas devem ter reconhecimento, mas também cumprir com suas atividades da melhor forma. Enfim, foi uma tarde muito proveitosa! Os alunos puderam ter uma conversa franca e direta com esta professora, bailarina, coreógrafa, porta bandeira, dirigente e baluarte do nosso carnaval com uma intimidade jamais vista!

Pedir pra eu falar da Tinha (Como chamamos ela) é a mesma coisa que falar de uma segunda mãe. Além de ela ser responsável pela minha formação em dança ela também cuida de mim e me aconselha na vida pessoal e profissional! Ela sempre acreditou na minha capacidade e na capacidade dos demais bailarinos. Ela é uma pessoa atenciosa, detalhista, exigente, mas com um coração enorme, um conhecimento da nossa cultura afro gaúcha e da nossa religião fora do normal. Tá sempre disposta a ajudar qualquer pessoa que lhe procura seja para pedir conselhos ou apenas um abraço! Sou grata a Tinha por tudo que ela faz e fez por mim! Amo fazer parte da família Afro Sul! Gisele Mendonça via rede social.

Em nome da Escola de Mestre Sala, Porta Bandeira e Porta Estandarte Padedê do Samba, queremos te agradecer Iara Deodoro! Pelas lições, pelos ensinamentos, pelas experiências reveladas e por nos proporcionar suas vivências que servirão para o nosso crescimento artístico, profissional e pessoal. Ficamos honrados com esta aula-palestra. Muito Obrigado!!!

NOTA: importante registrar que neste Espaço do Afrosul/Odomodê foi abrigo para a fundação da UDESCA – União dos Destaques do Carnaval, logo, foi o embrião para o surgimento do Padedê do Samba... este assunto será pauta para outro texto. Até lá!
Ramão Carvalho.


Para saber mais...

NETO, Manoel Gildo Alves; SILVA, Suzane Weber da. Enfatizando o gesto numa pesquisa sobre a memória da dança Afro-Gaúcha. V Congresso Nacional de Pesquisadores em Dança. Manaus: ANDA, 2018. p. 466-481. Disponível em http://www.portalanda.org.br/anaisarquivos/5-2018-4.pdf

MARTINS, Camila Cardoso Coronel. Memória e negritude: o grupo AFRO-SUL/ODOMODE como referência da cultura imaterial de Porto Alegre, RS. 2016. https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/157380 


SILVA, Natalia Souza da. Bloco Afro Odomode no Vinte de Novembro: celebração e resistência negra nas ruas de Porto Alegre, RS. 2017.  https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/177713

Nenhum comentário:

Postar um comentário